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O machismo está no ar


por Mazu
"Cure uma feminista: transforme uma militante peluda,
vegetariana e protestante em uma garota real."
O blog tenta derrubar o estereótipo de loucas varridas que as feministas têm, e a concepção errônea de que machismo e feminismo são coisas exclusivas de homens e mulheres, respectivamente.
Eu apoiaria o feminismo,
se vocês não fossem tão irritantes.

Eu, por exemplo, super clamo para quem quiser ouvir que sou feminista e tals, só que, no dia a dia, a gente escorrega né? Vai vendo. Eu tive duas conversas bem engraçadas com meu marido esses dias, a primeira, sei lá bem por que eu disse que era feminista, e ele: sério? mas, você é tão legal. Só para constar ele estava me zoando. A segunda, eu: leva o lixo para fora, está pesado, eu sou só uma menininha. Ele: você percebe a hipocrisia na sua fala, né? E eu, claramente.

Contei essas anedotinhas da vida pessoal só para ilustrar como essas coisas percorrem a vida da gente no cotidiano. A afirmação de princípios dá um puta trabalho e você tem que respirar isso né? Por isso a gente tem fama de chata, porque se você procurar esse ou aquele preconceito, você acha em todo lugar a todo o momento e fica lá falando, mencionando, apontando e chateando quem está em volta. Uai. Não é todo mundo toda hora que está a fim. Antes que minhas amigas de luta tenham um derrame e me expulsem do blog: a gente tem que fazer isso mesmo. E chatear mesmo e falar para quem não quer ouvir. Olha só, falar sobre isso com quem é simpatizante do assunto é sussa, não muda nada. A gente precisa convencer quem acha que isso é loucura, só assim para conseguir alguma mudança. Acho que a gente é menos chata e mais insistente, na verdade.


A violência e o machismo estão em todo lugar, quando você encontra nunca mais para de ver e se você parou de ver, sério, óculos ou exame profundo de consciência para você. Quando a gente distrai um pouco, está lá dizendo pro marido que é só uma menininha ou que fulana na novela é uma tremenda vadia. O machismo está no ar, triste, mas está, a gente tem que tossir e mostrar e não inalar nunca mais. ;)

Um exercício super legal, só que não, é prestar atenção nos comentários feitos nas notícias do yahoo e no blog da Lola. Aviso: parem antes de começar a pensar em suicídio. Depois disso, dá para ver que não é exagero pegar pesado com o machismo, porque quem é machista pega pesado demais, há tempo demais.

Já que disse que somos insistentes e que o machismo está em todo lugar, só para ilustrar e ser repetitiva e insistente, vou deixar os números, links e figuras abaixo:

Números tirados do Mapa da Violência, Anexo violência contra a mulher, sobre os números de atendimentos no SUS de incidentes de violência contra a mulher:
  • relação com o agressor: até os 14 anos os pais são os principais responsáveis, dos 20 até o 59 preponderam os parceiros e, a partir dos 60 anos, os filhos;
  • 56% dos casos envolvem o uso de força corporal ou espancamento;
  • 68,8% dos casos ocorrem dentro da casa da vítima
  • 42,5% dos casos, o agressor é o parceiro ou ex-parceiro, na faixa etária de 20 a 49 anos, essa porcentagem sobe para 65%
Aqui tem mais sobre isso.

Notícia sobre a nomeação de uma mulher para a presidência da Comissão Sul-Africana.

Atentem para o seguinte comentário:
"Mas vamos ver se por ser mulher ela corresponde as espectativa (sic)"
Link para as fotos da manifestação do Femem.

Leiam três comentários, no máximo, mais que isso risco de depressão profunda. ;)

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Deu no New York Times: mulheres superam homens no teste de QI!


por Tággidi Ribeiro

Bem, na verdade, não. O New York Times ignorou a notícia, sem dúvida histórica, de que as mulheres, pela primeira vez, tiveram nota mais alta que os homens no famosíssimo teste de QI (Quociente de Inteligência).

O teste de QI, como o conhecemos hoje (alvo de muitas críticas), é aplicado há mais ou menos cem anos e sempre foi usado como prova de que mulheres são menos inteligentes que homens. Durante um século homens superaram mulheres nesse teste, que mede basicamente a capacidade de raciocínio lógico de uma pessoa.

Inteligência masculina?
Mulheres, como se costuma ouvir por aí, têm maior inteligência emocional, sabendo lidar com, ensinar e cuidar de melhor forma que os homens, tidos como mais "racionais". Às mulheres caberia, portanto, segundo o senso comum e também uma parte da ciência, todo um entendimento "emotivo" do mundo.

Poderíamos, pela novidade do resultado do teste de QI, influir que a mulher é tão racional quanto o homem, ou talvez até mais que ele? Ou, ao menos, que possui habilidades lógico-cognitivas semelhantes ou mesmo superiores às de seus pares XY?

Podemos responder afirmativamente a essas questões, se sabemos que mulheres só começaram a ser aceitas em universidades há pouco mais de cem anos e que, durante quase toda a história da humanidade letrada, mulheres foram proibidas de chegar perto do conhecimento tido como masculino, ou seja, tudo que não tem relação com a limpeza da casa, a criação primeira dos filhos (alimentação e alfabetização) e a manutenção da beleza.

Contudo, nosso mundo não está preparado para tanta novidade. Em vez de admitir que mulheres, ainda que tenham menos neurônios que homens, pensam tanto quanto eles se expostas ao conhecimento, à educação, nosso mundo preferiu achar outras respostas, como 'a complexa vida da mulher moderna'.

Daí eu pergunto: quem parece lógico e racional nessa história? E respondo: não este nosso tempo - e suas conclusões.

Na verdade, praticamente tudo o que foi dito acima pode ser desconsiderado. A discussão sobre quem é mais inteligente é, no fundo, pouco inteligente. É necessário lembrar, sempre, claro, que mulheres foram PROIBIDAS de estudar durante milênios. Mas é necessário, sobretudo, denunciar o silenciamento do gênio feminino na história. Temos a impressão de que somente os homens pensaram e construíram este mundo quando, na verdade, existe um processo deliberado de anulação da figura feminina como agente transformador. Ou vai dizer que você sabia que a equipe de cientistas que anunciou recentemente a descoberta do Bóson de Higgs foi liderada por uma mulher?

Eu não sou uma mulher diferente

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O machismo vai te comer


por Roberta Gregoli


Num post anterior descrevi como mesmo as mais bem-intencionadas das feministas acabam caindo nas armadilhas sutis do sexismo. Também argumentei que não devemos nunca culpar as mulheres porque o machismo está em todo lugar e fomos criadas com ele, não raras as vezes até mesmo dentro de nossas famílias. O nome carinhoso que eu dou para isso é lavagem cerebral cultural. E é preciso muita reflexão e paciência nessas horas - com nós mesmas e com o próximo.

Deve ter uma parcela de leitor@s que lê esse primeiro parágrafo e pensa: aí, mania de perseguição. Eu sou tão descolad@, tod@s @s meus amig@s são descolad@s, minha família é prafrentex, eu não fui criad@ assim porque essa de machismo não rola no meu meio.

Mas você vai ao cinema, certo?

Há um teste muito interessante para filmes chamado teste Bechdel*. Para passar no teste, um filme precisa cumprir 3 critérios simples:

1) ter pelo menos duas mulheres que tenham nome
2) que conversem entre si
3) sobre um assunto que não seja homens

É incrível a quantidade de filmes que não passa no teste -- vale a pena começar a prestar atenção quando for ao cinema.

O teste Bechdel surgiu com este quadrinho, criado por Alison Bechdel em 1985

É como se, não bastasse não haver espaços de representação para as mulheres (coberto pelo primeiro critério), quando eles existem são sempre colocados em relação aos homens (critérios 2 e 3). Somos condicionadas a sempre considerar os homens e, mais do que isso, a nos pensarmos em relação a eles.

Esse foi só um exemplo dentre vários que poderia citar. Você pode fazer outros testes também: veja o número de mulheres que trabalha na sua empresa e os cargos elas ocupam; compare o número de mulheres na sua sala de aula com o número de professoras (cursos de Letras são ótimos para isso, porque em geral a classe é majoritariamente feminina e a porcentagem muda completamente quando você olha para o quadro de professores e para os cargos mais elevados de chefia do departamento); preste atenção nas atitudes sutis do dia-a-dia, desde as cantadas desrespeitosas - que na maioria das vezes são "só de brincadeirinha" - até ser ignorada ou ridicularizada simplesmente por ter uma opinião e expressá-la.**

O machismo é um bicho papão, que perversamente aprendemos a respeitar desde pequen@s. Por isso proponho aqui, de maneira metafórica, a máxima católica - e guardem este momento, porque não é sempre que isso acontece em blogs feministas: orai e vigiai. Em termos laicos: reflita e esteja atent@, sempre.

Afinal, mulheres e homens, não se enganem: o machismo está em todo o lugar e, se você deixar, ele vai te comer!


* Obrigada à Crocomila por compartilhar o vídeo do Feminist Frequency, que é excelente.
** Como levantou a Patti, querida leitora aqui do blog.

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Roube, mas não faça sexo!


por Mazu

CPI no Brasil sempre foi uma coisa mais cômica e triste do que deveria ser. Mês passado, escutei no rádio alguns trechos das discussões entre os senadores e os ouvi chamando uns aos outros de tchutchuca e tigrão. Sério, posso dar o contexto que quiser para isso, nenhum fica bom.

Carlos Cachoeira, contraventor
Sob meu ponto de vista, a gente se distrai com tudo por aqui quando devia prestar atenção em aspectos políticos da situação do nosso país. Acho que só lembramos que a CPI investigava o senador Demóstenes quando ele foi efetivamente cassado. A CPI chamada de CPI do Cachoeira era, na verdade, sobre o Demóstenes Torres. O "contraventor" (eu adoro quando a mídia usa essa expressão), Carlos Cachoeira, é civil, e o procedimento investigatório de civil é inquérito policial, CPI é só para os caras do congresso.


Denise Leitão e Senador Ciro Nogueira
Dentre as distrações do processo investigatório, que foram muitas por sinal, temos a história da advogada e assessora de senador, Denise Leitão. Aparentemente, ela distrai todo mundo, eu, você e a mídia, porque ela é muito bonita e faz sexo. Enfim. Aparentemente, ela está sendo demitida do cargo por isso também. Não conheço a moça, mas levanta mão aí quem acha isso, assim, injusto. A história é que um ex-namorado da assessora, a qual vinha fazendo sucesso pela aparência física, resolveu soltar um vídeo íntimo dela na internet. Fatos relevantes: ela não estava nas dependências do órgão que trabalha, ela não estava com um de seus superiores ou subalternos e ela não estava em horário de serviço. E vai perder o emprego porque o senador para o qual trabalha está constrangido com o comportamento dela e não quer ficar dando explicações sobre isso o resto do mandato. Puxa vida, que dó dele, né. Bom, chamei atenção para onde ela estava e com quem (no vídeo) porque essas seriam razões, do ponto de vista jurídico, para demissão de servidor de órgão público, a primeira delas descrita como "conduta escandalosa na repartição" no estatuto do servidor público, lei 8112. Mas como disse, não foi o caso. Ela não descumpriu norma, nem desobedeceu lei alguma.

Esse tweet, genial, diga-se de passagem, me fez pensar o que diabos é a honestidade feminina afinal de contas? Legalmente falando, foi só em 2005 que o texto do código penal substitui “mulher honesta” por “mulher” para descrever o crime de estupro, foi nesse ano também que adultério deixou de ser crime, porque até então vinha sendo usado como defesa para homens que assassinavam suas parceiras infiéis.

O tweet faz uma relação bem bacana entre o ato (sexo consensual com um homem adulto) de Denise Leitão e o ato de Jaqueline Roriz, filmada recebendo dinheiro de caixa 2 para campanha. A Roriz foi absolvida pelos seus colegas deputados, agora, será que se depois de receber o dinheiro ela fizesse sexo com alguém no mesmo vídeo, de maneira não relacionada com sua profissão, ela seria absolvida também? Será que se tivéssemos notícia de sua vida sexual de alguma forma, e essa vida fosse diferente do “padrão”, ela seria sequer eleita?

Tenho uma amiga muito bonita que depois de uns 15 anos trabalhando em um órgão foi promovida para uma função de chefia. A rádio corredor diz que ela transou com alguém por isso. Eu sei que não foi assim, e ela sabe, ela não liga para o que dizem, mas eu sim. Fico brava, compro briga, enfim. Isso por que, no ambiente de trabalho, mulher sofre para afirmar a própria competência e quando é bonita, parece que é pior. Aparentemente, beleza e liberdade sexual não podem coexistir com competência. A gente tem sempre um estereótipo para derrubar nesse domínio implícito do masculino. Já disse, não conheço a Denise, mas, estou com a impressão de que ela está passando por algo parecido, em um grau super aumentado.
Agente Tapajós, investigador da operação
Monte Carlo, morto em Brasília, semana passada.

O Código Penal e Civil brasileiros mudaram, mas alguns estigmas permanecem. A nossa honestidade e competência continuam, de uma forma esquisita e triste, sendo definidas pelo tanto de parceiros e sexo que uma mulher tem durante a vida, pela forma que se veste e se comporta.

Ana Lídia foi torturada, estuprada e morta por asfixia,
na década de 1970, em Brasília.
Os suspeitos do crime foram o seu próprio irmão
(que a teria vendido para traficantes)
e alguns filhos de políticos e
importantes membros da sociedade brasiliense.
E já que estou falando em honestidade e já que comecei falando de CPI, preciso extrapolar: não só o conceito de honestidade feminina é muito complicado neste país, o conceito de honestidade no geral é de chorar. Lembrando que o Demóstenes volta ao cargo de procurador da justiça, lembrando que o grau de separação entre o Cachoeira e os políticos brasileiros (todos eles!) é menor do que o do Facebook, lembrando que o senador Collor (que dizem estar envolvido em uma história mal contada de assassinato e estupro de vulnerável na juventude em Brasília, entre outras coisas) é agora Presidente de Comissão de Ética. Lembrando que dois policiais federais do caso Cachoeira foram assassinados a semana passada. Sério mesmo, levando em consideração tudo isso, o que será que é ser honesto por aqui?

Bom, eu tenho a resposta para as mulheres: roube se quiser, mas não faça sexo. Para homens, é mais fácil, foram eles que escreveram as leis.

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Que educação dar a seu filho?


por Tággidi Ribeiro


Esse post não diz como vocês (homens e mulheres) devem educar seus filhos. Mas certamente apontará como não educar.  

Para começar, quero me dirigir às mulheres (homens, continuem a leitura, vocês são a contrapartida das lembranças que se sucederão). Pergunto: mulheres, quando vocês sofreram as primeiras investidas masculinas? Quando foram desrespeitadas - tiveram seus corpos invadidos de alguma forma - pela primeira vez?

Eu me lembro de que na infância eu já era assediada por seres do sexo masculino. Eles eram tão criança quanto eu e, por isso, durante grande parte da minha vida, atribuí o comportamento agressivo dos meninos nessa fase específica da vida como coisa de criança, de gente que ainda não aprendeu a se comportar.

Hoje vejo o erro desse ângulo de visão. Na verdade, aqueles meninos já haviam aprendido a se comportar e o que faziam era fruto de seu aprendizado de como tratar uma menina. E o que eles faziam? Bem, me lembro de diversas situações, todas análogas às do mundo adulto. De estar num clube, por exemplo, e me passarem a mão - não um fdp pedófilo, mas uma criança da minha idade (6, 7 anos). Lembro-me de que muitas vezes eu e minhas colegas tivemos nossas saias levantadas, quando os meninos não davam um jeitinho de espiar nossas calcinhas. Lembro-me de ser chamada de gostosa por um menino da minha turma que me olhava como, descobri depois, um ator de filme pornô chinfrim olhava pra mulher que ele ia comer - e nós tínhamos só dez anos. 


Ainda aos dez, cansada de ser assediada por esse mesmo colega e completamente sozinha nisso porque diziam os adultos que se ele fazia era porque eu dava corda, porque eu não me dava ao respeito (hein?), resolvi pegar ele de porrada. Passei uma aula inteira mandando bilhetes em que dizia que ia acabar com ele e um amiguinho dele era quem respondia, dizendo que era o outro quem ia acabar comigo. Eu o esperei no fim da aula e ele tinha tanto medo que não fez nada. Eu o chacoalhava pelos braços e gritava: "Você ainda vai fazer isso comigo?" Ele não conseguia responder porque, acredito, jamais imaginou que uma menina pudesse se comportar daquela forma. 

Enfim, como eu dizia, erramos ao querer encerrar esse tipo de falta de respeito na infância, na "falta de educação" que consideramos normal nessa etapa da vida. Também não podemos julgar que tal comportamento é natural, sendo expressão da sexualidade infantil. Com o tempo descobri, acompanhando o crescimento de meninos muito próximos a mim, que eles são ensinados a desrespeitar as meninas - nas rodinhas masculinas, homens em formação ouvem seus exemplos (pais, tios, vizinhos) falarem das mulheres como corpos a serem devassados, importando ou não sua vontade (como espiar, como encarar, como roçar, como forçar). Ora, aprendemos sobretudo por imitação. Penso que a TV ou a internet sejam influências menos relevantes que as falas não censuradas dos heróis de nossa infância.

Lembro-me de que um menino bem próximo, de "dentro de casa", um dia enfiou a mão no meio das minhas pernas, rindo, na frente de todo mundo, e eu gritei com todas as minhas forças. Tínhamos seis anos. O que EU ouvi dos adultos em volta?

- Deixa de escândalo.



 Não é "bonitinho".

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Você não está sendo oprimido...


por Roberta Gregoli


No meu texto anterior, defendi a reserva de cargos de chefia para mulheres numa organização sem fins lucrativos. Como sou feminista e não me calo nunca, tenho várias anedotas no mesmo estilo para contar.

Quando assumi a presidência do corpo de pós-graduandos do meu colégio em Oxford, organizei um jantar para promover integração e networking entre mulheres. Foi um escarcéu. Me confrontaram dizendo que aquilo era ilegal, que era discriminação contra os homens. Eu fiquei com dó, porque claro, quem aguenta tamanha opressão? Não poder participar de um jantar! É muito traumático mesmo. O mais irônico é que mulheres só foram aceitas em todos os colégios de Oxford no final da década de 1970, ou seja, jantares exclusivos para homens foram a regra por mais de 700 anos.

Orgulho branco, orgulho hetero e orgulho mimimi
Ao montar a rede de mulheres na associação de ex-alunos que faço parte, recebi um email de um homem, num tom meio de brincadeira, meio irônico, dizendo que ele sempre se perguntou por que, já que existia a rede de mulheres, não havia na associação uma rede de homens. Eu respondi que, provavelmente, porque a sociedade já era a rede das homens.

Proibida a entrada de meninas
No mundo todo, em todas as esferas de poder, a igualdade de gênero ainda é um ideal longe da realidade - e aqui falo sem exagero, já que mesmo os países mais evoluídos nesse quesito estão longe dos 50% de mulheres na política, educação (nos cargos mais altos das universidade, ainda que as mulheres tendam a ser mais escolarizadas), cargos gerenciais e de direção. Por que, então, ter uma equipe só de mulheres significa ser excludente e reacionári@ enquanto, no mundo todo, o clube do Bolinha está longe de ter terminado?

Na Inglaterra isso é tão óbvio que dá gosto citar. O ministério inglês tem mais ex-alunos de um único colégio de Oxford - e olha que existem mais de 30 colégios em Oxford - do que mulheres. Sem brincadeira. Basta olhar para o David Cameron, Nick Clegg, Gordon Brown & Co. para ver que, liberal ou conservador, política na Inglaterra é um jogo exclusivo, não somente de pessoas do mesmo sexo, como também com atributos tão específicos (branco, heterossexual, de elite) que acabam se tornando fisicamente parecidas.

Separados no nascimento: Nick Clegg e David Cameron
Na Inglaterra, esquerda e direita têm literalmente a mesma cara
Eu sou a favor de ações positivas como forma de reparação. Você não está excluindo o grupo dominante porque, por definição, o grupo dominante não é excluído. Dominante e oprimido é paradoxo, sacou?


A dificuldade com qualquer tipo de cota ou reserva de vaga é que você está abertamente negando privilégios e dizendo "não" para o grupo pessoas que se acostumaram a ter esse privilégio como dado, como natural e normal. Negar os direitos das minorias é fácil porque há uma série de discursos médicos, legais, culturais e sociais, já incorporados no senso comum, para apoiar essa exclusão.

Falar "não" para a maioria é difícil (e, num nível pessoal, desgastante) porque vai contra uma corrente poderosa e devastadora de preconceitos, medos e perversidades e, mesmo com muita estatística e boa vontade, é difícil desfazer esses discursos pois a dominação, principalmente a de gênero, está profundamente arraigada -- afinal gênero é o marco zero de todas as sociedades ocidentais.*

* Foster, William David. Gender and Society in Contemporary Brazilian Cinema. Austin: University of Texas Press, 1999, p. 8.

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Violência contra o homem


por Mazu

Nesses seis anos de Lei Maria da Penha, existiram alguns casos em que a lei foi aplicada para resguardar a segurança de homens. Houve sobre isso debates e comentários mil, na mesma época, inclusive, em que se estava tentando estabelecer a constitucionalidade da lei, já que ela diferencia homens e mulheres, o que estava sendo interpretado por alguns como inconstitucional. Bom, direito é uma disciplina que me encanta muito, mas não sou especialista, logo não vou me meter a dar uma opinião. Eu trouxe esse assunto antigo à tona para falar um pouco da violência doméstica contra os homens. Acho que a primeira vez que lei foi aplicada para proteger um homem foi em 2008 em Cuiabá, salvo engano.

O caso foi o seguinte: um homem conseguiu a aplicação da lei para se defender de sua mulher que o estava agredindo: bateu nele, quebrou seu carro e tals. Não tenho detalhes do caso, na verdade, ninguém pode ter. Ele fez a denúncia e pela característica repetitiva das agressões pediu as medidas protetivas. Existe muita especialista que não curte esse negócio da lei se aplicar aos homens, mas me pareceu que o juiz foi super lúcido. Ele apontou que foi bem melhor que ele tomasse essa atitude do que tivesse buscado vingança pessoal e cometido alguma violência contra a mulher. Disse também que o número de casos de violência contra o homem é bem menor (o que também é mostrado pelo mapa da violência), mas que os homens não denunciam por vergonha e preferem tomar as próprias atitudes ou ficar quietos. Ou seja, os homens quando são agredidos, ou agridem de volta ou se calam. 

E isso me lembrou uma amiga, assistente social em Campinas-SP, que me contou de um caso de um homem que tomava inúmeras surras da mulher e não fazia nada, quando minha amiga falou com ele, ele disse que morria de vergonha de fazer qualquer coisa porque onde já se viu apanhar de mulher? Lembrei também um episódio de Law and Order - Special Victims Unit (Episódio 10, temporada 3, "Ridicule") em que a vítima de estupro era um homem, e as estupradoras, três mulheres. Na série, o cara tenta denunciar e ninguém, além da nossa querida Detetive Benson, leva o cara a sério.

É fato que quando existe violência sexual contra mulheres ou homens, o agressor costuma ser do sexo masculino. Agora, se levarmos em conta que no Brasil, só com uma lei de 2009, que o homem passou a ser considerado também vítima de estupro, se houvesse ou existisse um caso como o do seriado, será que o cara denunciaria? E se denunciasse, será que alguém escutaria?

É possível o homem ser vítima e a mulher agressora. Os meninos não assumem isso ou qualquer outra vulnerabilidade porque simplesmente não foram criados e educados para isso. Aliás, na maioria, foram educados para morrer de vergonha dessas coisas, fingirem que elas não existem. E isso é raiz de várias coisas né? E não é bom para os caras não. Não mesmo. Nem para a gente também.

Eu sei e todo mundo sabe que a violência doméstica tem como vítima preferida a mulher, os números são incrivelmente maiores. Eu só queria mesmo tentar mostrar como uma sociedade machista pode ser hostil por inúmeros motivos aos homens também. Pensa só, um homem agredido pela parceira fica quieto por vergonha, uma mulher agredida pelo parceiro fica quieta por medo. Meu, não seria, sei lá, mágico viver em um mundo em que o machismo não existisse de ninguém para ninguém? E que violência e/ou tolerância à violência não fossem justificadas por bobagem nenhuma?

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Sou gay, mas sou honesto


por Tággidi Ribeiro



"Você é gorda, mas é limpinha. Você é feia, mas é de graça." Lembro-me de que, na época da faculdade (lá se vão quase dez anos), eu ria muito com Dalton Trevisan, autor dessa fala. Não é que tenha visto graça algum dia em destratar uma mulher por ser gorda ou feia - era o absurdo, a cócega nervosa do absurdo da violência verbal - que me fazia rir. Posto isso, digo o que penso: ser gord@ ou ser fei@ não é demérito, de forma alguma. 

E ser gay, é? Para mim, é claro que não. Não há demérito em ser gay, negro, velho, mulher. Muita gente pode concordar comigo, afirmar que ninguém é menos por pertencer a essas categorias, mas será que, lá no fundo, não compartilha dos mesmos sentimentos/pensamentos do "Não tenho preconceito! (mas...)!"? Ou do "Não tenho preconceito, desde que seja..."?

Pergunto porque é comum ouvir gente dizendo: "O cara é gay, mas parece homem, aí eu respeito". Ou: "Tudo bem ser gay, desde que eu não saiba." Muito já se disse também sobre negros: "É preto, mas é do bem". "É preto, mas é honesto." (Na época em que eu era criança, era frase corrente, e era tida como elogio. É por essas e outras que eu acredito em mudanças.)

E chegamos ao século XXI. Da mesma forma que negros eram desculpados por sua cor e se desculpavam por tê-la, vemos homossexuais desculpados e desculpando-se. Quem desculpa os homossexuais? Para quem os homossexuais pedem desculpas? Respostas respectivas: quem não deve; para quem não devem.

Homossexuais são 'desculpados' por uma sociedade heteronormativa 'descolada', 'de  bem', que aceita quem se comporta 'bem'. Ser gay pode, mas não pode parecer gay e precisa ter emprego estável, parceiro fixo também discreto etc. Homossexuais se desculpam diante desse conjunto heteronormativo dizendo: "Sou gay, mas sou honesto, sou trabalhador, pago minhas contas, sou discreto, não sou promíscuo". Quer dizer: um homossexual só pode escolher a quem devotar seu afeto e/ou seu desejo sexual SE preencher tais requisitos.

Agora, deixo que vocês me digam: como mulheres e velhos, por exemplo, se desculpam hoje? Como buscam respeito nesse nosso tempo, na nossa sociedade?




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Doando poder


por Roberta Gregoli
As mulheres representam metade da população mundial,
trabalham 2/3 das horas trabalhadas no mundo,
recebem 10% da renda mundial e são donas de
menos de 1% das propriedades do mundo
Bora lá discutir mais um tópico polêmico!

Estou montando uma rede de mulheres como parte da associação de ex-alunxs do meu mestrado e esta semana, ao organizar as eleições para os cargos da diretiva, esbarramos numa questão crucial: se sexo seria um critério de candidatura. Para mim, é claro que sim: homens são bem-vindos para se associarem à rede, mas os cargos de chefia ficam reservados às mulheres. Ao contrário do que algumas disseram, não se trata de discriminação nem exclusão.

Um dos argumentos contra foi que o importante é ter uma pessoa qualificada, independente de ser homem ou mulher... Ora, mesmo no caso hipotético de recebermos uma candidatura de um homem mais qualificado, como ele poderá representar as mulheres em nossas necessidades e desafios específicos? E se uma associação voluntária sem fins lucrativos não é o espaço para as mulheres desenvolverem suas habilidades e enriquecerem seu currículo, então onde será? Se um dos principais propósitos da rede é dar apoio às mulheres para ocuparem mais cargos liderança, que irônico seria se a diretiva fosse composta majoritariamente por homens?

É improvável que isso aconteça -- mas porque os homens não terão interesse em se candidatar, não porque as mulheres estão agarrando com unhas e dentes as oportunidades de se colocarem no poder e garantindo o direito de suas companheiras de ocuparem esse espaço.

O fato curioso é que, mesmo antes deste incidente, nas duas reuniões que tivemos, pessoas diferentes levantaram a questão de como envolver os homens na discussão. Logo ficou claro para mim que estávamos gastando um tempo desproporcional discutindo o papel dos homens numa rede de mulheres. Fiquei pensando se o contrário seria verdadeiro num mundo em que influência e poder estão concentrados nas mãos de uma parcela tão restrita da população. Há alguns anos, eu era presidente de uma organização voluntária coordenando, por coincidência, uma equipe só de mulheres. Mais de uma vez ouvi das colaboradoras que devíamos tentar atrair mais homens para a diretiva. O principal argumento era que precisávamos de diversidade, afinal, o mundo é muito diversificado. O mundo sim, as esferas de poder não, basta ver a figura no começo do post.

Mas voltando ao caso da rede de mulheres, por que tanta preocupação em se certificar de que os homens terão espaço? Na associação, a diretiva é 86% masculina (apenas 1 cargo em 7 é ocupado por uma mulher) e nenhum homem mostrou interesse em participar da rede. Não parece sensato esperarmos que algum homem queira participar para daí considerarmos a possibilidade? Pelo menos o contrário sempre foi verdadeiro: se não fossem as mulheres reivindicarem o direito ao voto, o direito ao divórcio, a lei Maria da Penha, nada teria caído de mãos beijadas pela benevolência alheia.

Eu não as culpo, pois acho que há dois fatores difíceis de se livrar: o primeiro é a introjeção da opressão. Qualquer coisa que se pareça minimamente com o feminismo ameaça e incomoda e costuma ser ridicularizado e rechaçado, por isso muitas mulheres não querem ser vistas como "muito feministas", para usar a expressão de uma delas. Houve até papos de que uma rede de mulheres "não seria levada a sério". Acho que só essas duas colocações já deixam claro a necessidade da iniciativa. O segundo fator é o patriarcado em si, que nos condiciona social e culturalmente a nos pensarmos em relação aos homens, sempre -- mas deixemos este assunto para um texto futuro. 

Cotas e iniciativas como a rede de mulheres não tem a ver com exclusão, ressentimento ou ódio aos homens. O propósito não é colocar as mulheres contra os homens, mas sim oferecer espaços positivos de interação e oportunidades de liderança, que infelizmente ainda faltam às mulheres no "mundão", como diz a querida Sandra Seabra Moreira.

Mas enquanto nós, mulheres, negarmos a nós mesmas esse direito, o direito ao poder, e não nos posicionarmos claramente em defesa de mais oportunidades para nós mesmas e nossas companheiras, enquanto continuarmos a abrir mão do poder, introjetando a opressão a que somos sujeitas, nós, feministas, teremos que continuar incomodando.

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Feminismo e Militância


por Mazu

Um dos objetivos do nosso blog é divulgar um pouco da teoria feminista, buscando desmistificar a fama de loucas queimadoras de sutiã e destruidora de lares que cerca ainda os militantes do movimento feminista.

Hoje vou falar um pouco do trabalho de mestrado de uma companheira do Coletivo Feminista da Unicamp, a Maira Abreu. Estivemos juntas no início da formação do coletivo e dividimos vários momentos e debates acalorados e produtivos. A dissertação de mestrado da Maira fala sobre o feminismo dentro da militância de esquerda e é muito interessante.

Para começar ela traz algumas definições básicas do que é feminismo (eu gosto sempre de lembrar que feminismo não é o oposto de machismo) e um pouco da história do movimento no mundo e depois começa a tratar do Brasil e do papel das mulheres durante a militância na época da ditadura.

Conversando com a Maira lá por 2004, ela na iniciação científica ainda, ela me contou da dificuldade que tinha de afirmar que existia machismo dentro dos movimentos de esquerda. Era como se os revolucionários fossem sagrados e perfeitos, e toda vez que ela tentava mostrar isso entrava em conflito com alguém. Enfim, fico feliz que ela tenha conseguido. E mais, concordo com ela, machismo não é necessariamente "privilégio" dos movimentos de direita ou mais tradicionais da sociedade. Convivi com militantes a vida toda e existe muito machismo dentro da militância de esquerda, pode ser velado, pode ser disfarçado (como é um pouco toda discriminação e preconceito na sociedade atual), mas existe sim. Está lá.

A dissertação da Maira, por sua vez, está aqui. Boa leitura e bora debater sobre isso. ;)


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A mídia mascara crimes de ódio


por Tággidi Ribeiro
 

Você não sabe nada sobre o massacre de Realengo.

Você ouviu dizer que um maluco brasileiro qualquer resolveu imitar os malucos dos Estados Unidos e saiu atirando contra alunos de uma escola do Rio de Janeiro, no dia sete de abril do ano passado. Você estava cansad@ desse tipo de história e da falsa comoção midiática que ela gera, da dor de gente real transformada em espetáculo. Você, supondo que se tratava mesmo de um cara que surtou, tomou a história como mais uma tragédia e seguiu a sua vida, oras.

Mas, como eu disse, você não sabe nada sobre Realengo. Então, vamos esclarecer as coisas, porque eu tenho certeza de que a sua perspectiva sobre este e sobre alguns dos últimos massacres em escolas vai mudar - e você vai ficar mais atento. O que aconteceu na Escola Municipal Tasso da Silveira foi um crime de ódio calculado, planejado durante meses e que contou com o apoio de um grupo de incitadores do ódio.

Se vemos Wellington Menezes de Oliveira falando em qualquer dos muitos vídeos que circulam na net, concluímos que ele é um louco. Se lemos sua carta de suicídio, sabemos que ele é um louco. Contudo, só o fazemos porque ele matou doze crianças, pois que o discurso de Wellington é um discurso estabelecido em inúmeras seitas e religiões, que pregam a eliminação de todo mal. Infelizmente, o mal maior em muitas religiões é a mulher.

Então, retifico: Wellington não matou doze crianças - matou dez meninas e dois meninos. Segundo testemunhos de quem presenciou o massacre, Wellington feria meninos e executava meninas, a quem chamava de 'seres impuros'. A Lola Aronovich explicou tudo muito bem neste post.

Agora você sabe, finalmente, algo sobre Realengo e poderá ficar mais atento a crimes semelhantes. Portanto, quando vir notícias como essa, desconfie. Se você ler mais um ou dois artigos sobre o mesmo assunto, poderá pensar que os gêneros não evidenciados (ou deliberadamente trocados) pela imprensa, assim como as explicações dadas para os assassinatos de mulheres,  tentam encobrir o nível da violência a que estão expostas, tentam mascarar os crimes de ódio que as vitimizam.

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Minha vagina, meu templo - ou não


por Roberta Gregoli

Há pouco mais de um ano, foi em Oxford um grupo chamado Orchid Project fazer uma apresentação sobre Mutilação Genital Feminina (MGF). Eu já tinha ouvido falar da MGF, mas a palestra me deixou absolutamente perplexa. Reproduzo aqui alguns dados.

A MGF é uma prática ainda em voga em diversos países (mais da metade dos países africano e também na Malásia, Curdistão e entre grupos de imigrantes na Europa), que consiste em cortar partes da genitália feminina, normalmente em crianças de 5 a 8 anos. São 4 tipos de mutilação:

  • No tipo 1, o clitóris é parcialmente ou totalmente removido (clitorectomia);
  • No tipo 2, o clitóris e pequenos lábios são removidos;
  • No tipo 3, o clitóris, pequenos e grandes lábios são removidos e parte da pele remanescente é costurada em graus variáveis de abertura. Por vezes, corta-se novamente uma abertura maior para a noite de núpcias e para dar a luz;
  • No tipo 4 enquadram-se todos os outros tipos de procedimentos que agridem a genital feminina, como raspagem, picadas, esfregões e o uso de ervas ou outras substâncias.
As consequências são obviamente o risco de infecção e até morte. Em 2004, mais de 140 milhões de meninas e mulheres viviam com as consequências da MGF no mundo.

Os dados são chocantes e a tentação de vilificar esses grupos é imensa. As coisas ficam mais complexas quando colocadas em perspectiva: a MGF é uma tradição e, apesar de muitas mães afirmarem que não queriam que suas filhas fossem cortadas, uma genitália não-cortada é considerada feia e uma menina que não foi cortada não se casará, o que nessas sociedades é o principal papel social da mulher.

Intervenções de países estrangeiros de tom moralista e imperialista há 50-60 anos resultaram numa reafirmação da FGM como tradição. E isso que é o legal do Orchid Project: elas trabalham com as comunidades, durante meses e até anos, para que a iniciativa de banir a prática parta de dentro, não de um bando de gringos eurocêntricos ainda que bem intencionados.

O pessoal do Orchid Project diz que é possível erradicar a MGF completamente, como aconteceu com a prática de enfaixamento de pés na China, que foi banida em apenas 12 anos. A ONG Tostan já conseguiu que 5.300 comunidades abandonassem a prática de MGF utilizando uma metodologia super interessante, sempre com enfoque na comunidade.

Na época que assisti à palestra comecei a divulgar os dados para amig@s e foi interessante ver a reação de indignação das pessoas. Um amigo, inclusive, ficou muito movido e chamou as comunidades de primitivas, dizendo que não aceitava uma coisa dessas. Simpatizo muito com o sentimento de indignação e tristeza, mas ao mesmo tempo acho que as coisas são muito mais complexas porque estão inseridas culturalmente, e a verdade é que somos muito cegos quando se trata da nossa cultura

A muffia: sem pelos, melhorada cosmeticamente
Veja, por exemplo, as chamadas cirurgias de rejuvenescimento vaginal. (E aqui faço a ligação com meu último texto sobre a banalização das cirurgias plásticas no Brasil.) Elas estão sendo feitas em número crescente no Reino Unido, o que rendeu até uma marcha própria em Londres: a Muff March (a Marcha da Xoxota). E, surpresa, o Brasil faz 5 vezes mais cirurgias de rejuvenescimento vaginal do que a média dos top 25 do mundo

Ame seus lábios
Claro que se pode argumentar que há uma diferença grande entre a intervenção feita por esse tipo de cirurgia e a MGF, mas pelo menos em princípio elas são muito parecidas: a alteração da genitália feminina (incluindo um procedimento cirúrgico doloroso que sempre envolve algum risco) para se atingir uma estética arbitrariamente construída cultural e socialmente

Não sei se meu amigo, que é brasileiro, se consideraria um bárbaro como ele esbravejou com relação às comunidades africanas. Mas acho que cabe a nós pelo menos nos indagarmos -- e nos indagarmos genuinamente, esquecendo argumentos que têm por base uma ideia distorcida de liberdade do tipo "fui eu que escolhi fazer a cirurgia" ou "eu não me sentia bem com o meu corpo" -- o quanto valores estéticos culturais são, na verdade, instrumentos de opressão das mulheres. E a MGF, assim como as cirurgias plásticas, são a ilustração perfeita de toda a tortura e dor que as mulheres passam para se enquadrar nos valores de uma sociedade ainda incrivelmente machista.

Suas partes íntimas são normais!

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Mulher fatal??


Por Mazu

"A história de Elize Matsunaga, assassina confessa, que esquartejou o marido milionário enquanto a filha dormia"


Queria começar dizendo que sou contra violência, toda ela, queria que não existisse. Sinto mesmo que por mais escrota que uma pessoa seja, ela não merece ser esquartejada. Sinto isso daqui do meu computador, no ar condicionado, sem ninguém me ameaçando ou ameaçando alguém que amo. Se estivesse em outra situação, sinceramente não sei. Dito isto, gostaria de tecer um ou dois comentários a respeito da matéria da revista Veja sobre o caso de Elize Matsunaga.

A capa me chateou bastante por ser super sexista e sensacionalista, por sua vez, a matéria dentro da revista estava menos preconceituosa e tendenciosa do que o esperado pela capa, ainda assim, foi bem mais curta do que eu esperava. O fato é que essa edição vendeu horrores, e a gente bem sabe que a capa teve parte no milagre. Acho que quando digo sensacionalista, meu ponto está bem claro pela escolha dos termos, pela formulação do título e subtítulo. E sexista pela “mulher fatal", penso que podemos convir que o termo denota e conota preconceito, usado para o "bem" ou para o "mal". Na maioria das vezes, a mulher fatal é a vilã (porque a mocinha tem que ser a virgem). E o grande problema é que este caso não é tão preto no branco assim, existem milhares de tons de cinza. Não estou defendendo ou dizendo que a Elize é uma heroína, acho só que qualquer definição absoluta e maniqueísta dela deixaria a desejar. E que o rótulo de vilã lhe foi dado sem maiores considerações porque ela é mulher e porque já foi garota de programa.

História de Elize foi comparada a Uma linda mulher pela Veja
Para tentar construir meu argumento, vou comparar a Elize com o goleiro Bruno do Flamengo que também virou capa de revista. Não vou compará-los como pessoas ou pelos crimes porque não os conheço nem sou jurista, vou compará-los por suas respectivas exposições na mídia. 

Pelo que se diz, o Bruno alimentou seus cães com a mãe do seu filho recém nascido. Foi capa de revista, mas estava de roupa, sem nenhuma nomenclatura estereotípica ou condenatória e duvido que tenha vendido tanto ou tanto pelo mesmo motivo. Novamente, aviso aos navegantes, não aprovo nada disso, não acho ninguém que cito no meu texto um grande exemplo de vida ou de ser humano. Mas, gostaria mesmo de entender por que o fato de ser mãe e a crueldade da Elize pesam tanto mais. O Bruno é pai, não é? Ele premeditou o crime, ela não.

São dois pesos e duas medidas. O fato de Elize e Bruno serem pais pesa mais para Elize porque ela é mulher e na nossa cultura, ser mãe implica mais responsabilidade do que ser pai. O fato de ser uma ex-garota de programa pesa mais para Elize do que o fato do marido dela comprar mulheres por aí como se elas fossem coisas. Aliás, ele comprava mulheres por aí “enquanto a filha dormia”, o que parece ser um fato muito importante para a Veja: fazer as coisas enquanto os filhos dormem. O que será que o Bruno fazia enquanto seus filhos dormiam? Bruno e o executivo da Yoki eram pais também, mas Elize é mãe, consequentemente, seus crimes são piores porque existe um imaginário, uma imposição social inculcada nas mulheres e nos homens de que as mulheres têm que ser mais delicadas, amáveis, santas, têm que perdoar, têm que amar seus filhos e companheiros acima de tudo e todas as coisas. A gente já falou disso aqui de várias formas, mas o assunto nunca se esgota porque o padrão só faz se repetir.

"goleiro", "ídolo"
Em cima de tudo, como cereja do bolo, ainda tem a questão legal. Elize não recebeu relaxamento de prisão, nesta última semana, pelo alarde midiático do seu caso e, vou chutar, pelo poder da família da vítima. Para quem estiver escandalizado: o relaxamento de prisão, no Brasil, nesses casos, é mega comum, considera-se que o réu primário em tais e tais circunstâncias não representa perigo para a sociedade. O interessante de tudo é que o Bruno, goleiro, teve relaxamento de prisão concedido. Inclusive, o Flamengo disse que seu lugar está garantido no time quando ele quiser. Contem para mim qual vai ser o lugar da Elize no mundo se um dia ela sair da prisão? Dado Dolabela virou a mão na cara de três mulheres e ainda é galã de novela, eu queria ver quando uma mulher que apresenta comportamento parecido é mocinha e onde. Lembrando que o artigo 5º da Constituição em seu inciso I, diz: homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição. - é, então, acho que não!

Meu ponto é: uma ex-prostituta que mata um executivo milionário vira capa de revista, recebe prontamente o rótulo de assassina, destruidora de lares. Agora, duvido que um executivo que mata prostitutas seja pelo menos indiciado. Não é que eu duvide diretamente da competência dos órgãos responsáveis, duvido de tudo mesmo. Duvido que mulheres em determinada situação façam a queixa, duvido que, depois disso, se assim fizerem, que alguém as ouça ou acredite nelas, depois disso, duvido que se faça alguma coisa, e em cima de tudo isso, duvido que a mídia se importe. Duvido! Aliás, parece que existe um serial killer de prostitutas solto em São Paulo, você já ouviu falar? Pois é.

E outra coisa, no mundo que a gente vive, por que homem fatal é um termo que não existe, por quê? Redundância? Sério mesmo, com a quantidade de mulheres assassinadas por seus companheiros no Brasil, com requintes de crueldade também, na frente dos filhos também. Não vira capa de revista, e sabe por quê? Porque nós somos mulheres, somos descendentes de Eva, todos os pecados são nossa culpa! - ou é pelo menos nisso que a sociedade patriarcal vem nos fazendo acreditar. Já cansei de ver gente chamando a vítima do Bruno, mãe do filho dele, de interesseira, piriguete, Maria chuteira e tal. Mas e aí? Tudo bem dar de comer aos cachorros então? Se um homem mata por ciúme/dinheiro/traição a culpa é da mulher; se a mulher mata por ciúme/dinheiro/traição a culpa é da mulher também. Sim, nasça com dois cromossomos X e ganhe a culpa do mundo de brinde! Sério, que poha é essa? Em pleno século XXI? Não me desce, não entendo nem aguento.

E isso me pega tanto justamente porque os números são absurdos assim e desiguais assim.

A cada cinco minutos, uma mulher é agredida no Brasil. - leiam isso e me digam se não dava uma puta capa de revista. Essa informação e outras mais estão no mapa da violência no Brasil, em seu caderno complementar sobre homicídio de mulheres. O documento conclui que os altos níveis de feminicídio são decorrentes de níveis altos de tolerância da violência contra as mulheres, aponta ainda que, embora existam leis, as políticas de aplicação não são tão efetivas.

Talvez seja o momento de fazermos uma relação entre a tolerância da violência contra mulher e a culpabilização da mulher nos casos em que ela é vítima. Se tudo que a acontece a mim, mulher, acontece porque eu deixo ou permito fica absurdamente difícil evitar, punir, contar ou prever.

No caso da Elize, gostaria de ver a separação das coisas e das culpas. Ela era agredida pelo marido, ela foi traída pelo marido - essas atitudes foram dele, não dela. Agora, ela assassinou o marido, esta atitude é dela e de mais ninguém. Não importa o tipo de pessoa que a mãe do filho Bruno tenha sido, ele a matou/mandou matar - esta atitude é dele e somente dele. A respectiva culpa para o respectivo agente.

Gostaria mesmo de viver um dia em uma sociedade em que meus erros não fossem mais errados e meus acertos não fossem menos certos só porque eu sou mulher.